Tenho quebrado copos

Do meu poema preferido e dos frenesis que encontro no caminho

Isadora Vitti
5 min readMay 25, 2021

Eu me lembro da primeira vez que li o poema da Ana Martins Marques e de como ele fez eu me sentir. Eu estava na parte mais minha de um apartamento em que não me sentia em casa (a cama, no lado direito do quarto à esquerda) rolando o feed do Facebook. Era 2016, o dia não lembro de cor, mas conseguiria resgatar rápido com a ajuda de Mark Zuckerberg e das postagens que continuam no ar. Mas isso não importa. Importa é que o poema apareceu pra mim, as palavras inéditas subindo no feed: tenho quebrado copos, é o que tenho feito. Raramente me machuco embora uma vez sim. Hoje já sei todas de cor e as recito em momentos difíceis (na pandemia, quase semanalmente), mas na época elas tinham o sabor de uma descoberta apoteótica. Desde os treze anos sinto que estou quebrada. Lembro exatamente como foi a queda e de como me senti. Também não importa agora. Importa é eu queria que descobrissem, me perguntassem, reparassem nos sinais da minha boca que não falava ou nos meus olhos que não denunciavam. Que alguém — mesmo sem nenhuma pista — levantasse a mão durante a aula e falasse: “Professora, a Isadora está quebrada”. Enquanto os anos passavam aumentava a minha ânsia para que as pessoas descobrissem, ao mesmo tempo que eu própria melhorava as estratégias para esconder as rachaduras. Mas naquele dia, no lugar mais meu do apartamento que não era lar, senti o alívio de ser descoberta. O meu não-inteira escrachado num poema, do primeiro ao último verso.

Tenho quebrado copos
é o que tenho feito
raramente me machuco embora uma vez sim
uma vez quebrei um copo com as mãos
era frágil demais foi o que pensei
era feito para quebrar-se foi o que pensei
e não: eu fui feita para quebrar
em geral eles apenas se espatifam
na pia entre a louça branca e os talheres
(esses não quebram nunca) ou no chão
espalhando-se então com um baque luminoso
tenho recolhido cacos
tenho observado brevemente seu formato
pensando que acontecer é irreversível
pensando em como é fácil destroçar
tenho embrulhado os cacos com jornal
para que ninguém se machuque
como minha mãe me ensinou
como se fosse mesmo possível
evitar os cortes
(mas que não seja eu a ferir)
tenho andado a tentar
não me ferir e não ferir os outros
enquanto esgoto o estoque de copos
mas não tenho quebrado minhas próprias mãos
golpeando os azulejos
não tenho passado a noite
deitada no chão de mármore
estudando as trocas de calor
não tenho mastigado o vidro
procurando separar na boca
o sabor do sangue o sabor do sabão
nem tenho feito uma oração
pelo destino variado
do que antes era um
e por minha força morre múltiplo
tenho quebrado copos
para isso parece deram-me mãos
tenho depois encontrado
cacos que não recolhi
e que identifico por um brilho súbito
no chão da cozinha de manhã
tenho andado com cuidado
com os olhos no chão
à procura de algo que brilhe
e tenho quebrado copos
é o que tenho feito

Ana Martins Marques

Depois daquele dia comecei a busca obsessiva por saber mais da poeta mineira. Comprei o seu primeiro livro, “A vida submarina”, e depois mais um e mais um outro. Comecei a devorar entrevistas e pesquisar no google “fatos interessantes sobre ana martins marques”, assim, entre aspas mesmo, para encontrar o resultado exato. Tudo era insumo para alimentar minha expectativa de que, quando eu menos esperasse, descobrisse algo que me causasse o mesmo frenesi daquela noite em 2016. Com outro poema dela ainda não aconteceu, mas fui encontrando com outras coisas pelo caminho.

No intercâmbio, foi quando eu saí do avião e pus os pés pela primeira vez num lugar que não era o Brasil. Foi o frenesi de sentir no corpo que o mundo é muito maior do que eu estava acostumada, que existe muito mais do que o meu trabalho, as minhas manhãs comendo sucrilhos e a minha ansiedade de estagiária. Não que eu não soubesse disso, é claro, mas foi sentir no corpo e no jetlag de um avião de onze horas, no descer a escadinha com todas as pessoas que descem a escadinha e no sair com o passaporte com todas as pessoas que saem com o passaporte.

Às vezes é com coisas pequenas. Senti quando comecei a enumerar com minha amiga Cintia as melhores sensações do mundo. A gente estava no nosso bar preferido (gatilho), naquele estado meio bêbada meio alerta, eu ou ela voltando do banheiro pela terceira vez. E começamos a pensar que ir ao banheiro apertada era muito bom, assim como botar a cabeça cansada no travesseiro e tirar os sapatos depois de um longo dia os calçando.

Essa newsletter é a sequência da busca por sentimentos bonitos, ou, como Ana Martins no meu poema preferido, a procura “por algo que brilhe”. Pelas pequenas histórias felizes quando tudo é desesperançoso e doído. Para que eu possa compartilhar o que eu gosto e ouvir outras belezas também. Quem sabe até encontrar novos frenesis nesse caminho. No próximo texto — se é que vai existir um — , escreverei do amor de minha mãe, o que é quase o mesmo que falar de mim: o frenesi dela é por Maria Bethânia (lembro que quando eu era criança, ela ligava o rádio bem alto em “Reconvexo” e rodava na sala de estar). Nas próximas, talvez o de amigos, artistas, colegas, qualquer coisa que brilhe.

Sobre pequenos alegrias dos últimos dias:

  1. Ser lembrada num conteúdo sobre gatos. Minha amiga (obrigada Carol Oliveira de Jor) me enviou a primeira fotografia de gatos da história, na década de 1880:

https://curiosidad.quora.com/La-primera-foto-de-un-gato-de-la-historia

Pesquisando mais (obcecada, obviamente), encontrei uma thread de um moço dizendo que a informação é falsa e que a primeira foto de um gato foi dez anos antes, em 1870, pelo fotógrafo britânico Harry Pointer (que fazia várias fotos de felinos). Fake News ou não, a informação fez meu dia e mais ainda uma amiga ter se lembrado de mim em conteúdo gateiro.

  1. Essa notícia (que com certeza foi a pequena alegria do seu dia também): https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/datafolha-lula-lidera-corrida-eleitoral-de-2022-e-marca-55-contra-32-de-bolsonaro-no-2o-turno.shtml
  2. Ter descoberto que meu vizinho abriu um bar dentro do prédio e faz drinks de pitaya (com desconto para moradores).
  3. A música “Game”, do álbum “Te amo lá fora”, da Duda Beat, que desde que lançou ouço no repeat.
  4. Esta página, presente de outra amiga. É do livro “o amor dos homens avulsos”, do Victor Heringer, uma das poucas leituras que me marcou nesses tempos.

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